sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Ocupações. Reinventar a política

Eduardo Rabenhorst

Giorgio Agamben observou que estamos tão diretamente implicados naquilo que nos é coetâneo que acabamos por não conseguir compreendê-lo em sua inteireza. É que assim como no célebre conto da Carta roubada de Edgard Allan Poe, muita proximidade tende a tornar as coisas opacas. Por isso, escreve Agamben, todos os tempos são obscuros para quem deles experimenta a contemporaneidade.

Apesar do risco da cercania excessiva que nos cega, há urgência em se pensar o contemporâneo. Aliás, o contemporâneo é a própria urgência. Urgência de refletir e de agir diante da instabilidade crescente das condições de vida. Urgência em recuperar a confiança, urgência para avançar.





A ocupação de quase mil e duzentas escolas no Brasil deveria ser uma urgência. No entanto, enquanto os governos federal e estadual continuam inertes, reitores e diretores de escolas, com muito pouco poder de barganha, precisam tentar estabelecer canais mínimos de diálogo com os estudantes ocupantes, mas também com aqueles que protestam contra as ocupações. Em alguns casos, o Estado rompe seu silêncio abissal com o uso da força policial e do aparelho judiciário, criminalizando a ação política coletiva e pondo em risco a integridade dos manifestantes.





Na mídia o assunto tampouco parece ser urgente, sendo praticamente ignorado, à exceção de alguns corajosos jornalistas como Eliane Brum, Rafael Alves de Oliveira, Mario Volpi e Luiz Ruffato, que destacaram nas últimas semanas pontos que me parecem essenciais, especialmente as limitações dos argumentos daqueles que contestam a legitimidade das ocupações. Apenas completaria as posições desses intrépidos jornalistas dizendo que o tema tem sido tratado pelos meios de comunicação e redes sociais a partir de julgamentos de valor que não se dão sequer ao trabalho de tentar entender o que são as ocupações enquanto ações coletivas que buscam de algum modo reinventar a política.





Após o famoso Occupy Wall Street, ocorrido na primavera de 2011 em Nova York, a ocupação “dinâmica” do espaço público passou a ser empregada como forma de luta e de resistência. Uso aqui o adjetivo “dinâmico” para destacar que embora a tática de ocupação seja antiga, foi sobretudo a partir da última década que várias manifestações políticas, ocorridas em diversas partes do globo, passaram a utilizar a ocupação pontual do espaço público como forma de ação. Lúcia Tietboehl apresentou algumas das “novidades” dessas ocupações recentes quando comparadas às ocupações clássicas, como aquelas promovidas no Brasil pelo MST desde a década de 1980. As ocupações tradicionais recaiam sobre um bem privado que não estaria sendo efetivamente usado para fins de moradia ou subsistência de seu proprietário, contrariando assim o princípio constitucional da propriedade. Os ocupantes pretendiam estar conferindo função social à propriedade, conforme mandaria a constituição. Essas ocupações, portanto, eram permanentes e buscavam obter a desapropriação do bem ocupado por via administrativa ou judicial. As ocupações contemporâneas, ao contrário, são pontuais, recaem sobre bens públicos e não sobre bens privados, e questionam a própria noção daquilo que seria “comum” a todos. Os “novos” ocupantes não reivindicam, portanto, a propriedade dos espaços por eles ocupados. O que eles pretendem, pode-se dizer, é tensionar a própria noção de espaço público.



Como muitos autores contemporâneos já perceberam, o espaço público está desaparecendo no Brasil, seja porque passou a se identificar apenas com o espaço meramente estatal ou governamental (um órgão público, por exemplo), seja porque passou a estar sob o domínio privado, tanto na forma de espaços de exclusão, bairros pobres controlados pelo tráfico ou por milicianos, quanto na forma de espaços comerciais e recreativos privados e de acesso restrito. O que as ocupações contemporâneas pretendem, portanto, é denunciar essa diminuição do espaço público, mostrando que aquilo que deveria pertencer a todos (praças, ruas, parques, escolas etc.) não costuma ser apropriado pelos diversos grupos sociais de forma igualitária.





Enquanto gestor público tive que lidar com essa nova estratégia de ação coletiva, o que não foi fácil. Contudo, a experiência me levou a buscar entender um pouco mais sobre o caráter performático e dinâmico dessas ocupações. Organizadas por um coletivo formado pelas próprias pessoas concernidas na causa, mas também por militantes e simpatizantes, contando com apoio de personalidades midiáticas, as ocupações são menos sensíveis às pressões que seriam exercidas sobre uma associação específica. Interrogando a democracia representativa, as ocupações propõem uma democracia de exercício, construída a partir da tomada de decisões horizontais, em assembleia, ou no máximo por um pequeno grupo escolhido como porta-voz.





As ocupações são um experimento político de autogestão. Internamente, comissões são formadas para tratar de assuntos específicos e os ocupantes aproveitam a ocasião para trocar experiências e competências. Pode-se se destacar o emprego maciço nas ocupações das novas tecnologias de informação, especialmente das redes sociais, para romper com o poder da grande mídia, horizontalizar a comunicação e arregimentar novos adeptos, além de um aspecto muito importante que é a promoção intermitente de atividades artísticas e culturais. No Rio de Janeiro, por exemplo, alunos do Colégio Estadual Visconde de Cairú organizaram aulas públicas, um curso de pré-vestibular e diversas oficinas de leitura e de artes.





As ocupações não costumam ser violentas, ao menos não em sentido material, mas não há consenso sobre esse aspecto. Tudo depende da maneira como se entende a violência e seu uso no campo da política. No mais, dependendo do lugar e do tamanho da ocupação, não é fácil garantir que decisões coletivas sobre o não uso da violência sejam respeitadas por todos os envolvidos.





No lugar de ignorar as ocupações nas escolas ou de questionar a legitimidade delas, o governo deveria tentar aprender algo com os estudantes. A democracia não é um regime político, mas uma exigência de participação. As ocupações atendem aos próprios direitos de expressão e de participação política previstos na Constituição. É inútil dizer que se trata de um movimento “político”, pois as ocupações são exatamente isso, uma ação política contra outra ação igualmente política que consiste em querer aprovar uma emenda à Constituição e estabelecer uma reforma do ensino por meio de medida provisória, sem levar em consideração a opinião dos principais envolvidos. Por outro lado, as ocupações não podem ser chamadas de “invasões”, como alguns pretendem, já que estudantes formam parte dos espaços ocupados, não sendo, por conseguinte, alienígenas.





Claro, como qualquer outra ação coletiva, as ocupações das escolas podem cair em muitas armadilhas. Existe o risco da instrumentalização político-partidária, com certeza. Há também a possibilidade de se perder o foco, de se confundir a luta por reivindicações muito razoáveis em favor do ensino público e contra o corte de gastos orçamentários, susceptíveis de receber amplo apoio da população, com demandas mais abstratas, como a derrubada do governo, por exemplo. Porém, não há movimento social, em particular, movimentos sociais conduzidos por jovens, que não tragam uma boa dose de intensidade apaixonada. Em um momento de tamanha apatia política e melancolia, é no mínimo louvável a coragem desses jovens que assumem todos os riscos de uma atuação publica em condições muito desfavoráveis. Aos diretores de escolas e reitores, meus votos de coragem. Aos políticos, um alerta: vocês têm o poder, mas os jovens têm tempo e esperança, algo muito mais poderoso.



Wscom


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