domingo, 11 de fevereiro de 2018

As cidades serão o palco da renovação política no Brasil

Américo Sampaio

A agenda da renovação está sendo gestada fora dos partidos políticos. Em grupos, coletivos e movimentos sociais bastante atuantes e engajados. Na prática, isso significa que a forma pela qual todo esse anseio pelo “novo” se relacionará com os partidos políticos pode ser uma variável determinante nessa história

Desde as jornadas de junho de 2013, o Brasil passa por um momento de ebulição de um sem-número de grupos, coletivos e movimentos da sociedade civil que buscam mobilizar esforços em torno de uma agenda chamada de “renovação política”. A exemplo do que acontece em outros países da América Latina e da Europa, os novos atores políticos que entram em cena perturbam positivamente o establishment brasileiro, em defesa de pautas historicamente negligenciadas pelo poder público e por uma parcela influente e significativa da sociedade.



O debate acerca da intitulada renovação se propõe a dar respostas a um momento político no qual as instituições públicas perdem legitimidade e a crítica na sociedade sobe o tom em relação à desproporção da representação política de homens brancos, em detrimento de mulheres e negros(as). Um período em que a corrupção se torna assunto recorrente no cotidiano das pessoas e a atenção da classe política às necessidades mais básicas da população não chega nem perto de garantir o mínimo de dignidade.



No entanto, por mais que o movimento renovacionista se apresente como resposta ao déficit de democracia e cidadania que fustiga o Brasil, chama a atenção o fato de nenhuma de suas pautas consistirem exatamente em uma novidade. Há décadas organizações da sociedade civil, grupos e movimentos sociais trazem a demanda por renovação para o centro do debate. Porém, mesmo não sendo uma novidade, a reivindicação pelo “novo” na política atual configura uma agenda que encontra ressonância em diferentes espectros ideológicos e diversos setores da sociedade.



Em tempos de conexões brutas entre os campos moral e político, é possível observar pelo menos três grandes fluxos de discussão no cenário brasileiro que deveriam caracterizar a demanda por renovação política: um voltado para a ampliação da oferta de serviços e para a implementação de políticas públicas estruturantes com mais qualidade, em áreas como moradia, saúde, educação, meio ambiente, etc.; outro ancorado pelas pautas identitárias feministas, antirracistas e LGBTQI; e um terceiro fluxo focado na democratização do poder e na transparência, que pleiteia o fortalecimento dos mecanismos de participação direta, o combate à corrupção, a descentralização, a ética e outros. Os três fluxos se relacionam e têm conexões entre si, mas, para fins de análise, é importante separá-los.







Esses fluxos de discussão influenciam fortemente o debate acerca da renovação política, e seria interessante a onda renovacionista prestar atenção em suas demandas e anseios. Mesmo discursos e propostas mais conservadoras e liberais giram em torno desses fluxos. Formulações mais privatistas, que defendem a redução do tamanho do Estado, narrativas anticotas e a relativização do racismo e do machismo não rompem a lógica desses eixos estruturais. Pelo contrário. Apenas os reafirmam. Seja pela negação ou pela afirmação, esses são pontos elementares do que se deve considerar como agenda de renovação na atual arena política brasileira: ampliação dos serviços e políticas públicas, incorporação das pautas identitárias e democratização do poder.



Dessa forma, a pauta da renovação política consiste muito mais na articulação desses três fluxos de debate público do que somente na mudança do modo de fazer política. Por mais que alguns dos chamados “movimentos cívicos” e outros grupos por vezes escorreguem na armadilha de focar sua atuação apenas na forma e não no conteúdo, o desafio posto ao processo de renovar a política brasileira diz respeito à habilidade desses coletivos e movimentos de articular esses três eixos estruturantes do debate. Ou seja, mais do que valor em si, a agenda da renovação política se fortalece quando encontra sua habilidade de produzir convergência entre os três fluxos.



Articular os fluxos aqui significa ter a capacidade de formular propostas concretas que produzam confluência entre eles, respeitando sempre suas singularidades. Tais propostas têm o repto de convencer a população e trazer-lhe esperança. Este é, se não o maior, um dos principais desafios dos movimentos de renovação política no Brasil. Dessa forma, hierarquizar esses fluxos, como se uns fossem mais importantes do que outros, ou mesmo apostar no discurso da transversalidade não dão conta de atender a este desafio. Assim, articular os fluxos parece ser mais preponderante para a agenda de renovação política obter êxito do que seguir outros caminhos.



Essa reflexão envolve ainda outro elemento importante. O anseio pelo “novo” na política não é neutro nem exclusivo de um ou outro espectro ideológico. Os três fluxos de debate político podem ser articulados no interior de uma seara conservadora ou progressista – e talvez esse seja justamente o ponto de maior disputa na sociedade brasileira hoje e nos próximos anos – o que elimina qualquer possibilidade de conciliação ou união de forças antagônicas a favor de mudanças concretas e estruturais. O fato é que a renovação política acontecerá em algum momento e algo novo substituirá o que está aí. Assim, os grupos e movimentos cívicos precisarão escolher um lado, que não será construído pela aliança com qualquer outro ator político.



Outro ponto diz respeito ao contexto em que essa disputa vai se dar. Por mais que seja óbvio, é preciso considerar que a batalha pela agenda de renovação política se dará nas urnas. Claro que não só isso, pois as “ruas” serão também preponderantes nesse processo. Mas o contexto não é trivial. As eleições desse ano serão uma das mais polarizadas da história do país. A disputa pela agenda da renovação política se confundirá com a disputa pelo controle do Estado. Se os três fluxos de debate político aqui mencionados configuram – ou deveriam configurar – o centro gravitacional da agenda de renovação política, o arrabalde disso será o contexto eleitoral.



Ainda nesse sentido, cabe considerar que a agenda da renovação está sendo gestada fora dos partidos políticos. Isto é, em grupos, coletivos e movimentos sociais bastante atuantes e engajados. Na prática, isso significa que a forma pela qual todo esse anseio pelo “novo” se relacionará com os partidos políticos pode ser uma variável determinante nessa história. Isso porque os partidos perderam o monopólio de ditar a dinâmica do processo eleitoral e terão de criar meios de se relacionar e absorver uma agenda de renovação elaborada fora deles. Isso será um tremendo desafio. É claro que eles, os partidos, estão atentos e até debatem a questão com alguma profundidade. Eles estarão disputando essa agenda nos próximos processos eleitorais. Só que outros atores também o farão.



Na outra ponta, grupos e partidos políticos identificados como tradicionais – sejam eles do campo progressista ou conservador – vêm apresentando enorme dificuldade em absorver verdadeiramente a demanda pela renovação política gestada na sociedade e em grupos, coletivos e alguns movimentos sociais.



No campo conservador, essa articulação entre o novo e o velho se dá de maneira mais orgânica. Pelo histórico oligárquico brasileiro, as agendas de renovação conservadora têm maior aderência aos partidos e grupos políticos mais tradicionais, reconhecidamente à direita no espectro ideológico. As narrativas se encontram de maneira quase natural.



Por outro lado, no campo progressista, a disputa entre o novo e o velho, entre as novas formas de organização política e os partidos tradicionais, produz atritos mais ruidosos – claro que o que se coloca aqui é a relação entre as agendas de renovação progressista e os partidos à esquerda no espectro ideológico. Muito poderia ser falado sobre esse tema, mas um ponto específico merece ser especialmente mencionado (sem esgotar o debate, no entanto): práticas machistas, racistas e homofóbicas dos partidos de esquerda, quando em contraposição às demandas identitárias, dificultam a absorção dessas pautas e cria entraves para que a agenda de renovação política progressista ganhe maior aderência nos partidos.



Sobre o assunto, ressalta-se o fato de não ser apenas esse o desafio a ser superado no choque que haverá entre os movimentos renovacionistas e os partidos políticos tradicionais. Se, por um lado, os partidos assumirão o desafio de absorver as demandas pelo “novo” na política – forma e conteúdo – que os grupos e coletivos trazem consigo, por outro os movimentos cívicos terão de aprender a lidar com o acúmulo político, no que tange ao conteúdo programático e à estratégia, que os partidos produziram nesses últimos anos de atuação.



À vista disso, o cenário está montado. A articulação entre os três fluxos de discussão que pode caracterizar a agenda de renovação política se dará pela via progressista ou conservadora, a depender da disputa que terá nas ruas seu vetor mais potente, mas que precisará ter aderência dos partidos políticos para se expressar nas urnas. Uma coisa influenciará a outra. Se a articulação entre os três fluxos não produzir propostas concretas de atuação governamental, respondendo às demandas da população e convencendo-a de que existe de fato uma alternativa ao que está aí, e, ainda, se essa articulação não obtiver aderência real dos partidos políticos – o que inclui o desafio dessa resultante conseguir ser vitoriosa nas urnas –, será muito difícil assistirmos a um processo de renovação política no Brasil. Isto é, uma renovação política progressista e de enfrentamento. Porque uma renovação política conservadora, leia-se um falseamento da renovação política, poderá sim ocorrer, articulando os três fluxos de debate político pela sua negativa e gerando no futuro próximo uma democracia com traços de Estado de exceção.



Frente aos desafios aqui ensaiados, somam-se ainda duas importantes questões para compor a análise da renovação política no Brasil. A primeira é o fato de estarmos a menos de um ano das eleições, o que coloca o imperativo do tempo contra a agenda de renovação, pois seria preciso uma quadra maior na história para conseguir gestar, formular e articular de maneira concreta e convincente os três fluxos de discussão. A segunda questão se concentra na ideia de que as eleições gerais de 2018 envolvem duas esferas – o plano estadual e o federal – que tradicionalmente apresentam enorme dificuldade de promover inovação de fato. Pautas como a gestão da Petrobras, o controle de fronteiras, as reservas nacionais, entre outras, estão muito distantes do dia-a-dia da população. Sua compreensão é sempre superficial – o que é entendível –, e a capacidade de inovar nesses assuntos, por parte dos movimentos em defesa da renovação política, ainda é pequena.



Assim, o tempo que resta para as eleições e a complexidade das pautas nacionais e estaduais, somados ao cenário político e à relação que será estabelecida entre os partidos políticos e os três fluxos de discussão, podem enfraquecer a agenda da renovação política. O ponto é que esta agenda não terá nem tempo nem envergadura suficientes para produzir propostas concretas para um projeto inovador de gestão do Estado em 2018, seja no legislativo ou no executivo. A possibilidade de formulações inovadoras neste ano é muito remota. E o “novo” que os movimentos chamados de “cívicos” reivindicam para a política brasileira pode virar apenas uma embalagem – um embrulho em forma de slogan – de candidatos e campanhas que perpetuarão as mesmas práticas de sempre.



De qualquer forma, é pouco provável que todo o caldo político produzido em torno da agenda da renovação vá desaguar em 2018, mas as eleições deste ano podem abrir caminhos e nos dar uma pista de como e quando isso pode acontecer: no próximo pleito, em 2020.



Identificadas as tendências da renovação política para esse ano – aparentemente muito diferentes do cenário do processo eleitoral de 2020 – fica mais fácil refletir sobre as potências da agenda renovacionista para o próximo período. A ideia aqui não é antecipar as próximas eleições municipais, mas quatro pontos são importantes de serem mencionados para tentarmos compreender as pujanças entre a agenda de renovação e as eleições de 2020. Em primeiro lugar, o tempo de maturação dessa agenda. Se hoje existem inúmeros grupos e movimentos debatendo essa temática, por vezes até com discursos bastante semelhantes entre si, e por vezes também sem muita concretude nas propostas, será a partir das eleições de 2018, independentemente de quem vencê-las, que os novos campos políticos serão definidos, fazendo a poeira do aquário baixar, e ampliando a capacidade desses grupos de compreenderem a real conjuntura política brasileira. Essa clareza dos fatos e a definição de um governo eleito pelo voto, incluindo aí um novo Congresso Nacional, fortalecerá e acelerará o debate acerca do que é renovação política. Isto é, a definição de um novo governo e de um novo parlamento trará também um novo arranjo de campos políticos, pautas e estratégias, o que favorecerá o debate sobre renovação no Brasil, garantindo-lhe mais materialidade. Todas essas definições devem ganhar corpo em 2019, que será também um ano muito importante para a política brasileira.



Em segundo lugar, destaca-se o fato de as eleições em 2020 trazerem o debate para o nível municipal. Será nas cidades que as agendas de renovação encontrarão maior capacidade estrutural e cronológica de se tornarem reais. Questões como o que fazer com o sistema de ônibus, como gerir as creches, como dar mais qualidade às praças e centros culturais são infinitamente mais fáceis de serem digeridas pelo discurso da renovação política do que a política externa brasileira, o futuro do Pré-Sal, a nova matriz produtiva nacional, as inversões financeiras ou a composição do Mercosul. Dessa forma, além do fato de em 2020 o tempo de maturação da agenda de renovação favorecer sua reflexão, as pautas municipais também beneficiarão o debate sobre renovação política pela sua objetividade e relação direta que esses assuntos têm com o cotidiano da população. Soma-se a isso o fato de a grave crise urbana que aflige o país abrir margem para novas propostas de gestão de cidades, o que será outra grande oportunidade para a agenda de renovação.



O terceiro ponto diz respeito ao benefício dos aprendizados. Nas eleições municipais de 2016, alguns grupos e movimentos que se colocavam em defesa da bandeira da renovação política foram exitosos, com destaque para as experiências da Bancada Ativista, em São Paulo, e das Muitas, em Belo Horizonte. Esses processos aconteceram de forma um pouco amadora e diletante em 2016, mas terão mais estofo em 2020, podendo assim apresentar aprendizados, balanços, erros e acertos, e criando certa referência para os demais grupos no próximo pleito municipal. Esse elemento será demasiadamente importante para consolidar a agenda da renovação.



O quarto e último ponto traduz o encontro das teorias e estratégias renovacionistas com a prática dos atores políticos nas cidades. Os últimos anos foram marcados por uma grande proliferação de pequenos grupos, coletivos, associações, movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuam em questões pontuais nas cidades, em especial nos principais centros urbanos brasileiros. Pequenas experiências como a gestão de hortas comunitárias, creches comunitárias, gestão das ocupações de movimentos de moradia, gestão popular de centros e equipamentos culturais, grupos organizados de cuidado com praças e parques, entre outras experiências em todo o país, configurarão um cenário auspicioso para o debate sobre renovação política nas eleições de 2020.



Antes disso, porém, o ano de 2018 promete oferecer uma bela oportunidade de ensaio para a pauta renovacionista. A abertura dessa janela que se inicia agora desembocará com força em 2020. Não se trata de promover aqui futurologia, mas sim de analisar os elementos vivos à nossa disposição para buscar contribuir para o debate acerca da tão necessária renovação política no Brasil. A partir das reflexões aqui mencionadas, tudo leva a crer que a luta pelo “novo” na política, reivindicada por diversos grupos e movimentos sociais, se dará de fato nas eleições de 2020, o que significa que será nas cidades o verdadeiro palco da renovação política brasileira.



Tudo isso não ignora o fato de um dos principais desafios da agenda de renovação política ser o de articular os três fluxos de discussão no bojo de um projeto inovador de gestão do Estado, formulando propostas concretas que produzam esperança na população, reduzam as desigualdades, garantam o protagonismo das periferias, e, principalmente, que funcionem.



Assim, compreendidos esses desafios, não desconhecendo outros não citados aqui, fato é que, pelo menos no atual momento, podemos observar uma tendência de que a agenda da chamada renovação política tem um horizonte concreto: as eleições municipais de 2020. E será preciso estarmos preparadas e preparados para chegarmos até lá.



Américo Sampaio é sociólogo e gestor de projetos da Rede Nossa


Le  Monde  Diplomatique


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